Ontem foi o Dia Nacional de Luta Antimanicomial, me fez lembrar de um documentário que assisti essa semana e que impactou a minha vida. Coisas da história do Brasil, a que é marcada pela dor e sofrimento, em especial da pessoa preta, pobre e rejeitada. Foi na verdade as histórias de sobreviventes! Pessoas que conseguiram vencer ao inimaginável, guerreiros e guerreiras que de forma sobrenatural vivem hoje marcados por lembranças que jamais sairão de suas memórias.
Confesso que chorei. Seria impossível não haver emoção após tomar conhecimento das histórias dos sobreviventes ao “Holocausto Brasileiro: vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil”. Uma obra baseada num trabalho jornalístico de investigação, registrado em livro de mesmo título, que desnuda a falta de empatia generalizada, a insensibilidade e acima de tudo a crueldade de uma sociedade doente.
Para entendermos sobre o holocausto brasileiro precisamos conhecer a história dos manicômios no Brasil. O Hospital Psiquiátrico foi projetado para controle social. Não se destinava apenas aos doentes mentais, era um lugar onde se internavam os marginalizados da sociedade, que igualmente “perturbavam” a ordem social, dentre os quais podemos citar os mendigos, desempregados, criminosos, prostitutas, doentes crônicos, alcoólatras e pessoas sem domicílio. Não devemos nos esquecer que essa população era composta majoritariamente por negros libertos pelo processo de abolição da escravatura.
Nesse momento é possível que você esteja se perguntando: o que de tão absurdo existe nesse documentário? Pois bem, para começar lhe digo que já existiu nesse país um “trem de doido”, conforme chamou Guimarães Rosa, um trem que fazia viagens sem volta. Para resumir a história, durante décadas, milhares de pacientes foram internados à força, sem diagnóstico de doença mental, num enorme hospício na cidade de Barbacena, em Minas Gerais. Ali foram torturados, violentados e mortos sem que ninguém se importasse com seu destino. Eram apenas epilépticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, meninas grávidas pelos patrões, mulheres confinadas pelos maridos, moças que haviam perdido a virgindade antes do casamento e militantes políticos. Segundo os dados coletados na investigação, a grande maioria da população de internos do Colônia, como era chamado o manicômio, eram de pessoas negras.
Esse depósito de gente foi criado em 1903, fruto da proliferação de manicômios pelo Brasil iniciada nessa época. A meta era tirar de circulação o indivíduo que fugia dos padrões sociais estabelecidos, a ordem erahigienizar a sociedade brasileira.
No Colônia as pessoas eram esquecidas por seus parentes, jamais saíam de lá, quando não morriam de fome chegavam a óbito por conta do frio, visto que viviam nus e não possuíam cobertores. Na verdade o local onde dormiam era coberto por palhas e um pano de saco, formando assim a sua “cama de chão”. Tratava-se de uma unidade de morte e não de saúde, tudo estava organizado para diminuir o tempo de vida das pessoas. Os absurdos foram tamanhos que, a partir da década de 60, mais precisamente no período da ditadura militar, existiu ali todo um sistema mercadológico de corpos. Isso mesmo, DE CORPOS! Havia um aquecido mercado de venda de cadáver para universidades de medicina de forma clandestina e ilegal.
Na década de 70 o médico psiquiatra francês Franco Basaglia, líder mundial da Reforma Psiquiátrica na época, ao fazer uma visita de inspeção no Hospital Colônia denunciou que tratava-se de um campo de concentração inexistente no mundo. A partir daí o Movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil ganhou força e contribuiu para que os hospitais psiquiátricos pudessem parar de existir.
Não podemos nos esquecer que até bem pouco tempo existia na cidade de Itabuna o Hospital São Judas Tadeu. Quando eu era menino sempre ouvia falar que quem entrava ali recebia choques elétricos, era colocado em camisa de forças e ficava em uma cela gradeada. Diante de tudo isso, não é forçoso afirmar que houve um genocídio da população negra ao longo da história da psiquiatria brasileira e que tal prática teve como elemento central o racismo estrutural.
O saudoso Juliano Moreira, médico negro, fundador da psiquiatria no Brasil, no início do século XX já nos ensinava que na luta contra as degenerações nervosas e mentais, os inimigos a combater seriam o alcoolismo, a sífilis, as verminoses, as condições sanitárias e educacionais adversas. Para ele, o trabalho de higienização mental dos povos não deveria ser afetado por ridículos preconceitos de cores ou castas.
A marca histórica de constituição do povo brasileiro é a contradição entre classes sociais, condição que perdura até os dias atuais. É a concentração da riqueza na mão de poucos e a socialização da miséria e situação de vulnerabilidade como condição de vida de muitos. No Brasil as desigualdades têm raça, cor e etnia, nossa nação estruturou-se tendo por base o racismo, fenômeno social que ao longo da história tem determinado os lugares sociais das pessoas de acordo a cor da pele ou etnia.
Nos dias atuais o Governo Bolsonaro vem tentando de várias formas desmontar a Política Nacional de Saúde Mental, o que tem gerado um estado permanente de mobilização dos atores sociais envolvidos com Luta Antimanicomial. Em nosso país o acolhimento das pessoas com sofrimento psíquico na maior parte se dá por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) composta pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Unidades de acolhimento (UA) e Leitos em Hospital Geral. Em todos esses espaços os usuários do sistema devem ser acolhidos por uma equipe multiprofissional.
Finalizo dizendo que em Ilhéus a RAPS não está implantada, existem apenas três unidades CAPS sendo que apenas duas estão registradas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Além disso os leitos para Saúde Mental do Hospital Regional Costa do Cacau ainda não foram implantados. A constatação dessa triste realidade deve servir de combustível para a Luta Antimanicomial que ainda é viva e urgente.
Tiago Pascoal – Graduado em Educação Física pela UESC e Mestrando em Saúde Coletiva pela UEFS, atualmente trabalha no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CASP AD) de Ilhéus-BA.